Posso estar em surto no meio de tantos acontecimentos, mensagens, dúvidas, higienização, mas acredito que esse definitivamente não é o momento para analistas de relevância de marcas e creators estarem a propor cursos e lives sobre um assunto completamente desconhecido e imprevisível, correndo o risco de se tornarem as pessoas mais anacrônicas da web.
Confesso: paciência zero para estudos, previsões, aulinhas de relevância num momento que não sabemos nem quem estará vivo na próxima semana. Tudo tão novo e imprevisível e a galera fazendo defesa capitalista para salvar seu mundinho tecnocrata. Olhemos ao redor: o mundo em franca mutação e você preocupado com engajamento e relevância?
Se até pra mim que já discutia essa quebra de linearidade nos velhos sistemas de produção, venda e consumo não está sendo fácil lidar com um futuro que será fruto das incertezas e instabilidades desse presente mutante, fico a pensar o que deve estar passando na cabeça dos gurus do capitalismo da internet que até semana passada se sentiam os donos do mundo e que agora estão tendo que lidar com a ideia de aquele mundo está morto e não existirá da mesma forma em nenhuma instância profissional ou pessoal.
Os sinais são claros: a hora é de recolhimento e observação. Cuidado individual para a cura do coletivo. Se o termo marcas de moda já me soava anacrônico antes da chegada do primeiro episódio da última temporada de vida no planeta, agora então, só penso o quanto vai ser importante descermos todos de nossos pedestais opinativos sobre isso e aquilo, para reaprendermos que as pessoas — nos processos que porventura se configurem a partir de 2021, ou quando essa vacina surgir para nos tirar do loop infindável da quarentena/contaminação —têm valores e não preços.
Você que está aí querendo ensinar sobre as incertezas agora postas seguindo cartilhas e manuais anacrônicos, já se perguntou qual a sua relevância hoje? Por essas e muitas outras é que convido à uma reflexão que tenho feito diariamente sobre uma bandeira onde já vinha me exercitando criativa e politicamente: a moda não é mais sobre roupas, mas sobre pessoas! E obviamente, o que está aqui posto são questionamentos e dúvidas surgidos ao longo de seis anos de estudos sobre Economia Afetiva e como tal, não são respostas, mas uma abertura ao diálogo de construção colaborativa para os desafios aqui apresentados.
A moda, como o velho mundo, está morta! Pare e pense sobre um possível novo mundo que se configura a partir desse presente instável. Estamos apenas vestindo roupas, proteções, confortos, aconchegos. Antes, lá fora, tudo era sobre o olhar do outro, do narcisismo e da vaidade, valores caros às estruturas capitalistas de exploração de corpos e do fortalecimento de estereótipos num “mundo de mercadorias, que associadas à publicidade, tornaram-se as verdadeiras proprietárias do corpo, ou ao menos de sua imagem sexualmente atraente”.
“Aparentemente satisfeito em colecionar celulares, computadores e parceiros sexuais e participando do mundo natural, ao qual originalmente pertence, no papel de mero turista em viagem a lugares exóticos, o homem da era tecnológica traz dentro de si uma angústia profunda. Uma angústia que não pode mais evitar, a partir do momento em que um inimigo da sociedade moderna, como o coronavírus, revelou o quanto a tecnologia e a economia, tão valorizadas, são na verdade vulneráveis e não oferecem garantia de
presente e de futuro” (Rogério Paiva, psiquiatra e especialista em psicologia clínica em Florença, na Itália).
A moda, como a conhecíamos, empenhou-se em reforçar padrões de aparência e gosto. Ela fez com que nos viciássemos em observar o outro, de nos conectarmos com nossas aparências recíprocas, constituindo-se assim um aparelho de gerar juízo estético e social. Pois tendo sido o primeiro grande dispositivo a regular aparências, estetizando e individualizando a vaidade humana, fazendo do superficial um instrumento de salvação e uma finalidade da existência, qual caminho será oferecido para uma co-existência mais saudável no mundo que virá?
“A apoteose da gratuidade estética não deixou de ter efeito nas relações mundanas entre os seres, nos gostos e nas disposições mentais, e contribuiu para forjar certos traços característicos da individualidade moderna” (Gilles Lipovetsky, O império do efêmero).
*Comunicólogo e diretor criativo do festival Trama Afetiva, que estuda inovações sobre moda e sustentabilidade
Fonte: Correio Braziliense